#09 Educação pelo ritmo
Como um forró transcendental me mostrou que onde há ritmo, há caminho.
Eu estava descompassada. Ainda assim João Pessoa estendeu a mão e me chamou pra dançar. Eu tentava entender a dança de outra cidade, mas nem sempre pego o ritmo rápido, o jeito é ir destrambelhada mesmo, tropeçando no torcer das pernas. Acontece que o mês junino vem dobrando a esquina e alguma coisa vai mudando na Paraíba. O São João aqui é diferente. A festa cresce primeiro dentro das pessoas. Eu desejei uma festa junina crescendo dentro de mim há muito tempo. Por isso iria dançar, seja como for.
Foi no meio do show da Luana Flores, um menino assim do tamanho de um tiquinho de gente parou na minha frente e avançou o pezinho direito. Ele estava dançando coco. O nome vem dos colhedores de coco, que cantavam e quebravam a dureza da fruta, sempre marcando o ritmo. Pé direito na frente, pisando o quebrar do coco na dureza, voltando na esquerda na leveza, pisando com a direita na dureza. E assim eles amaciavam a vida. O menino tão pequeno aprendia cedo a brincar uma dança muito séria.
Começou por um acaso, recebi o convite para uma aula de forró, preparativo para o São João. Na imensa lista de prioridades da vida nunca sobrava tempo para dançar assim com fundamento. Eu fui humildemente para o grupo dos iniciantes. A professora explicava com paciência, pé pra frente, pé pra trás, um, dois, três, um dois três, umdoistrês. Com o tempo o contar vai saindo da cabeça e vai indo pro corpo e é aí que começa a ficar gostoso. Fiquei para a aula seguinte.
O show era um passaporte para o Nordeste Futurista. E o futuro é feito de muitos passados. No caso ele é a pisada dos trabalhadores, marcando firme o quebrar do coco, é o bater dos pés no pátio da aldeia potyguara, é a mão que amacia a percussão. Luana faz a ponte entre os tempos, sustentando com a voz a encantaria que vem dançar com a gente, guiados pelas bailarinas de corpo de borracha que claro, dançam o coco, o frevo, o forró e outras danças inventadas, num elo espacial em que o corpo é constelação inteira.
Depois da aula, a dança continua em um forró oficial. Desses que as pessoas vão pra dançar a sério. É um ritual bonito, não negar uma dança a ninguém, ficar sentada o mínimo possível, permitir ser guiada, adaptar o movimento ao outro, suportar o calor. Às vezes fechar os olhos e só deixar o corpo ir. Às vezes pisar no pé de alguém. Às vezes errar e começar de novo. Dançar se aprende dançando.
Vó Mera, uma senhora de quase 90 anos, subiu no palco para sua participação especial. O público foi logo abrindo uma ciranda. Sim, ciranda também se dança. Você pega nas mãos das pessoas próximas, pé direito dentro da roda, junta no meio, afasta. É uma brincadeira dança e é assim na distração, na despretensão que a cultura faz seu trabalho. A cultura popular cura. Ela foi e é a ferramenta de sobrevivência ancestral de muita gente.
Na semana seguinte cismei de aprender a tocar baião no pandeiro. O instrumento que carrego comigo, leve, compacto, perfeito para uma nômade. O baião, irmão do forró, invenção de Luiz Gonzaga, se toca abafando o couro, um, dois, três, no quatro solta o abafado, faz o grave, volta para um, dois, três, quatro, todos agudos. Aqui o pandeiro emula o som da zabumba, que é o instrumento coração de todos esses ritmos, porque como você sabem, o coração é um tambor.
Aqui no calor de João Pessoa conheci uma capixaba que divide a própria vida em dois tempos, antes e depois do forró. Ela que veio passar um mês, está na cidade há um semestre. Ela dizia com segurança que eu me encantaria pelo lugar assim como ela. Como cada pessoa tem seu compasso, demorou um mês para eu entender o que vim aprender aqui. Um, dois, três, um dois três, umdoistrês. Preciso aprender a amaciar a vida pelo ritmo.
O corpo até sobrevive, mas se a gente deixar correr solto, a dureza dos dias desgasta a alma. É aí que mora o perigo, diante dessa pedra de amolar, ou você se desgasta ou você se afia. Os colhedores de coco, abaixo do sol escaldante da Paraíba e de outros sertões, sabiam dos riscos e por isso inventaram um ritmo. Coco, forró, baião, frevo, maracatu, samba de roda, ciranda, xaxado, cavalo marinho e tantos outros são tecnologias ancestrais de resistência às investidas empobrecedoras da vida.
Se você estiver por aí distraído e for pego de surpresa por um ritmo, uma vontade doida de dançar, não hesite. Já temos motivos suficiente para a raiva endurecedora, para a tristeza debilitante. Vocês acham mesmo que essa invenção psicodélica chamada Brasil se sustentaria sem música, sem dança, sem ginga? Suporta melhor as adversidades, quem dança.
Pé dentro, pé fora, quem tem pé medroso vai embora. Onde houver ritmo, existe caminho. A cura mora no compasso de um forró transcendental.
Para ler ouvindo Nordeste Futurista
dancei nas suas palavras