#01 Educação pela água
Como eu aprendi a nadar depois de adulta e dei braçadas até 02 de fevereiro.
O grande ano novo da festa de Iemanjá é o primeiro dia do calendário soteropolitano. Eu estava em Olinda e decidi vir de última hora, movida por um compromisso etéreo que fiz numa noite de lua cheia meses atrás. Não sou muito dessas coisas, mas tenho deixado mergulhar os pés em água inexplorada. A única e absoluta certeza é a mudança. Premissa que levo bem a sério, desde que decidi me tornar nômade há pouco mais de um ano. Uma decisão que acima de tudo foi um ato de fé.
Fé é um tema complicado pra mim. Já tentou abrir mão do controle? É difícil pra caramba. Depois dos 30 piora. O manual da vida adulta diz que se não seguir os protocolos, tudo colapsa e você recebe um selo em letras neon de fracassada premium, dado aos que tiveram chances e não fizeram nada prestável com elas. A vantagem, no entanto, de não ter dado propriamente certo em nada é ter menos a perder. O fracasso é amigo da liberdade, já o sucesso é primo de primeiro grau do apego. E os dois são apenas uma tentativa desesperada de catalogar a vida.
Mesmo sem entender a fé, eu fui aprendendo a inventar espaços sagrados. A água é o meu templo. Qualquer beira de rio ou mar pra mim é uma igreja. A festa de Iemanjá parecia um movimento natural do meu animismo aquático. Em dois de fevereiro, a praia do Rio Vermelho, em Salvador, se enche de gente, carregando suas rosas para agradecer. De barco, nas pedras, na areia, essa gente toda joga suas flores no mar. O que eles rezam? O que o mar e Iemanjá respondem? A batucada vai crescendo pela praia, na rua a festa vai rolando solta, numa antecipação do carnaval. O que Salvador ensina, nem bem se coloca os pés aqui, é a não dualidade. Sagrado e profano andam juntos.
Eu gosto da ideia de sambar um samba, bravo, violento e extremamente sagrado. Gosto de ver o povo na rua suando, fazendo festa, sem pagar nada por isso. Gente que dança e canta, ninguém é capaz de derrubar. Eu tenho tido a sorte de viajar em muitas rodas, de samba, de coco, de maracatu, de capoeira, de ver os pés pisando o chão com força, mãos batendo seus tambores e quadris de rebolados divinos. Acho que esse país só não colapsou, porque os tambores sagrados formam um coração que ainda bate.
Uma amiga descreveu Salvador como o centro de uma tecnologia social avançada, eu achei uma ideia muito acertada. Uma tecnologia social ancestral que sobrevive, apesar da violência sistêmica. Quando a chuva desabou em plena festa, todo mundo deu um jeito, embaixo das marquises, dividindo guarda chuva com os vendedores de bebida, dançando embaixo d'água ou usando as mesas de bar como teto. Um caos, mas de uma maneira surpreendente no fim tudo se ajeita. Se a tempestade vem, procure um abrigo e espere a chuva passar.
Eu carregava uma tempestade no peito quando fiz minha primeira grande mudança aos 23 anos. Eu achei que seria uma boa ideia me mudar com meu namorado da época para uma casa no meio do mato, no Mato Grosso. Um delírio utópico, inspirado no filme "Na natureza selvagem", na leitura adolescente de Walden e na poesia de Manoel de Barros. Eu era uma jovem adulta, nascida e crescida na cidade, cuja habilidade e conhecimento sobre a vida rural estava abaixo de zero. Foi uma grande viagem. Olhando para trás, o que me guiava era puro instinto de sobrevivência. Minha mente à época, assim como o país, estava perto de colapsar. Já tinha um bom tempo que eu andava perigosamente na borda.
Quando eu era criança, não me ensinaram a rezar, então eu inventei minha própria prece. Deus, não me deixe cair no buraco, amém. Talvez aos cinco anos eu já antevia os íngremes caminhos que percorreria e me antecipava no pedido. Eu gosto de imaginar que quem me salvou esses anos todos foi a reza da minha criança cheia de fé. A aventura no mato me trouxe muitas coisas e também me tirou outras. Foi um equívoco corretíssimo. Sobretudo, foi minha alfabetização na pedagogia das águas. Até então eu não sabia nadar e me sentia velha demais para aprender. Acontece que no fundo da minha casinha rural, existia um riacho de nome Engano. Isso mesmo, foi no Engano que eu aprendi a nadar.
Eu sobrevivi ao afogamento de cada um dos meus enganos. É como ficar preso num refluxo no meio do rio, o único jeito de sair é perder o controle e deixar a água te soltar. Depois de aprender a nadar, eu comecei a remar, mais por insistência dos novos amigos do que por vontade própria. De repente, eu estava embarcada num caiaque, remando corredeiras, sem ter a menor ideia de como eu fui parar ali. Foi no Rio Poguba, onde eu aprendi a remar, que eu voltei a rezar. Eu não sei falar com nenhum Deus Homem que mora no céu, minha divindade era o próprio rio. Antes de remar eu pedia passagem, caminhos abertos para meu barco, se eu virasse que suas águas me abraçassem. Uma corredeira é como uma batucada violenta, mas dá pra aprender a sambar.
O mar que é feito de tantos rios também só pode ser uma divindade. Eu que venho de longe, lá do cerrado, ainda vejo esse amontoado de água com deslumbramento infantil. Foi em Salvador que eu comecei a nadar no mar pra valer. Praia do Porto da Barra. Lá no fundo, entre os barcos, braçadas consistentes, passando por cardumes e com sorte alguma tartaruga, eu só conseguia pensar, como é que eu vim parar aqui?
Eu nem sabia nadar, eu era velha demais para aprender, quando tudo mudou? A cada dia eu estou mais velha, mas contrariando as expectativas, sigo fazendo o que nunca imaginei ser capaz de fazer. A vida é um grande rio que atravessamos nadando, peito aberto, em águas profundas, às vezes cristalinas, às vezes terrivelmente turvas. A fé é não ter medo da água-vida?
Dois de fevereiro. Eu joguei minhas flores no mar pela primeira vez e agradeci.
Obrigada, Iemanjá, por me ensinar a nadar.
"Uma corredeira é como uma batucada violenta, mas há como aprender a sambar" 🌋🌎🧭🗺🤪🙃😘🤯💥🫀💃
Incrível Jack❤️