Agora essa newsletter tem apresentação oficial em áudio:
1.
Quando, numa rara manhã, você desperta de sonhos tranquilos, o despertador no último volume, o atraso já ameaçando na quina da cama, você sente a memória do sonho se escondendo na profundidade escura, ameaçando se perder por completo, mas dessa vez você o agarra. Você traz o sonho para perto, você o convida para abrir as cortinas, fazer a cama, escovar os dentes e preparar o café. Você o reconta enquanto esparrama farelos de pão sobre a mesa, sua família boceja. Ninguém tem tempo para sonhos, os dormidos e os despertos. Mas esse sonho é desobediente, ele se cola na parede das horas, como um mensageiro insistente.
Você cumpre os deveres do dia com pressa, pensando no reencontro, pode ser que ele te visite de novo, com sua luz dourada e a promessa de um outro lugar que você é incapaz de imaginar, mas que estranhamente pode sonhar. Você sonha uma possibilidade e essa minúscula gota onírica transborda no amanhecer. Se houvessem ouvidos para ouvir, se o tempo escorresse para além dos relógios, em uma manhã diferente das outras, quem sabe, você nos contaria o que viu.
E se essa manhã for agora?
2.
O mundo sonhático é talvez um dos últimos territórios não colonizados da experiência humana. Ainda. As ameaças estão por todos os lados, porque para sonhar é preciso dormir. Em geral, o ser humano em modo perpétuo de produtividade dorme pouco e mal. O sono é uma inconveniência econômica, uma pedra no meio do caminho do consumo. Eis as palavras do CEO da Netflix em pergunta sobre as possíveis concorrentes da plataforma:
"Quando você assiste a um programa da Netflix e fica viciado nele, você fica acordado até tarde da noite. Estamos competindo com o sono, na margem. E é um período de tempo muito grande". (Reed Hastings)
Ou seja, meus caros, o seu soninho está atrapalhando o mercado de entretenimento, porque, para a roda que nunca deixa de girar, o melhor é que você tenha insônia e maratone séries pela madrugada, regado a pedidos de delivery, com alimentos de qualidade duvidosa e que depois viva a base de um coquetel de remédios, não testados para a hipótese de interação medicamentosa. Por essas e por outras, é bom colocar uma linha divisória bem grande entre a atual lógica de mercado e a sua possibilidade de vida.
Quando falo em "possibilidade de vida" estou me referindo às condições materiais, emocionais, e por que não, espirituais básicas para o florescimento da existência humana. No atual momento estamos falhando nas três frentes, mas o jogo ainda não acabou e eu acredito na virada mesmo que seja na prorrogação do segundo tempo. É por isso que tenho direcionado minha imaginação para a criação de outros campos, outras hipóteses e eu sei que só tenho condições de fazer isso, porque minha barriga está cheia e não vivo (como tantos) em circunstâncias reais de mera sobrevivência.
Aproveitando o excedente energético e porque a vida me empurrou para um longo projeto sobre sonhos, que sim paga meus boletos, passei a prestar atenção no que acontece enquanto durmo. Passei a buscar uma relação mais íntima com as narrativas oníricas elaboradas pela minha mente. Logo, comecei a amar sua desobediência, sua insistência simbólica, a natureza psicodélica que desafia tempo e espaço. Os sonhos podem até sintetizar as experiências que vivemos durante o dia, mas às vezes ele almeja mais, ele vai fundo. Por muito tempo na história - e ainda hoje para muitos povos - os sonhos são transmissores de sabedoria.
Não prestar atenção nos sonhos, não levá-los a sério, desprezar suas mensagens, ignorar até mesmo a necessidade básica de dormir, do repouso e descanso em troca de um projeto de vida que nos reduz a hamsters correndo em suas diminutas rodinhas, é apenas mais um dos reflexos prismáticos da crise imaginativa. Inclusive, que semelhança intrigante, isso me leva a seguinte pergunta:
O sonho é imaginação?
3.
A imaginação é um tipo de sonho. Nos dois casos nosso cérebro produz ou acessa imagens e narrativas que ora são um compilado de nossa própria experiência, ora se misturam com a experiência coletiva. E para os mais experientes na arte de sonhar - os povos ancestrais - o sonho é uma viagem que traz conhecimento e expansão da consciência, ou seja, eles são uma fonte infinita de inteligência.
"Os brancos não sonham tão longe como nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos". Davi Kopenawa.
O que significa sonhar longe? É sonhar o futuro, é sonhar para além de sua mera experiência cotidiana. No livro Oráculo da Noite, o neurocientista Sidarta Ribeiro, trata da hipótese evolutiva do sonho, existe um motivo para criarmos essas narrativas noturnas, o sonho é um exercício de hipóteses que nos guiam nas decisões do mundo desperto. Sonhos proféticos, então, não seriam uma coisa de outro mundo, papo para místico, eles seriam uma das prováveis condicionantes que permitiram aos humanos resolver problemas e expandir seu domínio sobre a face da terra.
A imaginação serve ao mesmo propósito. Na tela viva de nossas mentes despertas, imaginamos hipóteses, testamos e a partir desse teste virtual, decidimos que caminho seguir, no quê ou em quem acreditar. Essa musculatura imaginativa é condicionada por experiências prévias, pelo seu sistema de crenças, pelo o que você aprendeu ser possível ou impossível, e principalmente pelo seu estado emocional. A capacidade é ilimitada em teoria, mas as condicionantes são enormes, pegajosas e nos cercam de todos os lados. Nossa imaginação também está em disputa.
A perda de valor dos sonhos noturnos é também a perda da capacidade imaginativa. Estamos doentes de literalidade. Sonhamos pouco, sonhamos mal e não sonhamos longe. Da mesma forma, imaginamos pouco, imaginamos mal e não imaginamos longe. O resultado disso é uma vida interior empobrecida, raquítica, vagando por escombros de uma paisagem destruída. Uma terra arrasada dentro de nós, uma terra arrasada fora de nós.
4.
Os sonhos esquecidos de nossas noites mal dormidas são lembretes de que cada ser humano possui uma incrível capacidade de elaboração, de criatividade, de acesso ao saber coletivo e imaterial de nossa espécie. Isso significa que todo ser humano - independente da conta bancária - tem valor e pode contribuir para a expansão da experiência terrena. Nossos sonhos estão em disputa pelo mundo do consumo, pela falta de tempo, pelo excesso de telas, pelo entretenimento de dopamina fácil. Mas eles resistem.
Colocar atenção nesse campo, pode nos ajudar a expandir o imaginário quando despertos. É trazer de volta para o dia a dia a possibilidade da linguagem simbólica, é propor um olhar menos literal para vida. Mais do que nunca precisamos recuperar o sentido poético da existência, porque sem ele não vamos resistir aos obstáculos do presente e aos fantasmas do passado. Vamos precisar vestir nossos olhos que dormem e acordam com algum sentido de sagrado, a começar por nosso mundo interior.
Quem sabe pouco a pouco vamos conseguir deixar de sonhar com nós mesmos e passar a sonhar outros sonhos, o das árvores, dos bichos, o sonho mineral e enfim o sonho da Terra, que há tempos quer nos contar seus segredos oníricos. Segredos dela, segredos nossos, porque mais que humanos, somos terráqueos, da Terra viemos e para ela tornaremos.
Mais uma vez, Davi:
“Acho que vocês deveriam sonhar a terra, pois ela tem coração e respira.” Davi Kopenawa
5.
E na rara manhã que é agora, você pode, sem medo, contar o sonho, o do outro futuro. Vamos ouvir, porque aprendemos, enfim, a sonhar o grande e profundo sonho terreno, aquele que costura todos nós no fino tecido vida.
Outros imaginários
Esse texto tem duas citações de Davi Kopenawa, xamã yanomami, um dos autores da obra monumental “A queda do céu", apesar dos tempos sombrios para os yanomamis cerceados pelo garimpo de ouro, Davi continua nos lembrando a importância dos sonhos grandes.
O neuroscientista Sidarta Ribeiro é a maior referência nacional em pesquisa sobre sonhos. Vale a pena ouvir o que ele tem a dizer em suas entrevistas para inúmeros podcasts ou lendo a obra Oráculo da Noite.
E por falar em sonhos, Noites Severinas, porque cada ser tem sonhos à sua maneira: