Já imaginou ouvir minha voz no pé da sua orelha? Com certeza não, mas:
1.
Uma imagem invadiu sua cabeça como um raio, logo essa vontade se transportou para as mãos inquietas. Você era hábil no manejo da pedra que lentamente ia retirando os excessos de marfim, transcrevendo a imagem surgida na sua mente como uma pancada. Os leões te atormentavam. O terrível medo de ser devorado invadia os sonhos noturnos. Os felinos silenciosos e o bote certeiro não ofereciam escapatória nem mesmo para a mais rápida entre vocês. Com devoção e terror, suas mãos criam a forma. O homem-leão, corpo humano e cabeça felina.
A obra trazia uma sutil tranquilidade para a caçada que se seguiria. De um jeito ainda inexplicável, porque lhe faltavam palavras, aquela imagem sugeria que dentro de nós, frágeis criaturas, também poderiam habitar leões ferozes. Ao ver a imagem, o bando sentiu o mesmo. Seu coração se encheu de coragem, naquela noite, você tinha certeza, todos voltariam vivos.
2.
Quarenta mil anos depois, sua obra é encontrada em uma caverna na Alemanha e é chamada de "Homem-Leão" (Löwenmensch). Você nunca recebeu os devidos créditos, porque na sua época ainda não havíamos inventado o direito autoral e porque o seu nome se perdeu no tempo, há algumas boas centenas de anos. Ainda assim, seu mérito é reconhecido, segundo os arqueólogos, sua criação é uma das mais velhas obras figurativas de arte, descoberta até hoje.
O que aconteceu dentro da cabeça humana para impulsionar a criação de algo original e único até hoje é um mistério. Comportamentos humanos não deixam fóssil. Tudo o que existe para imaginarmos nosso passado são os artefatos, os esqueletos e meia dúzia de hipóteses. E nós sonhando acordado todo santo dia, achamos que essa habilidade veio de fábrica, mas a verdade é que foi uma longa jornada para chegarmos até aqui.
3.
Lá fui eu em minha inocente curiosidade fazer um breve curso de neurociência em busca de respostas. Então vamos do começo…
Ao que parece o primeiro hominídeo a criar ferramentas foi um parente nosso, os Australopithecus, há cerca de 3.3 milhões de anos. Mas segundo as evidências, o processo era um pouco aleatório, derruba a pedra aqui, bate uma pedra na outra e com sorte ela vai criando forma. É basicamente o que muitos de nós faz com a própria vida, tenta aqui, aperta dali e com alguma sorte alguma coisa vai sair. Por isso, eu tenho simpatia pelos Australopithecus, entendo e pratico o empirismo de contar com a sorte, mas nem sempre funciona.
Mais tarde, outro parente, o Homo Erectus, inventou uma nova técnica, conhecida como Ferramentas Oldowan. Aqui a coisa vai ficando sofisticada, porque exigia um processo elaborado, era preciso ter um plano, escolher a pedra certa e já era possível ver uns toques de embelezamento, sabe? Fazer a machadinha ficar mais harmônica e tal. Foi, sem dúvida, um grande passo para a humanidade, mas ficamos repetindo esse processo por mais de um milhão e meio de anos. Nenhuma invençõazinha, nadinha, zero.
Poderíamos ter parado aí e você não precisaria se preocupar se a AI vai acabar com seu emprego, mas há cerca de 130.000 anos algo mudou. Isso significa que ficamos umas 100.000 gerações com pouquíssima inovação e do nada começamos a inventar moda. Em algum momento por volta de 41.000 anos atrás, nossa espécie, Homo Sapiens Sapiens, pirou de vez, tipo deu a louca no gerente e simplesmente apresentamos ao mundo um design cognitivo revolucionário.
Esquece a Apple, esquece foguete do Space X, esquece o filtro de barro, chat GPT (risos), esse novo design é a maior revolução de todas e a que permitiu que os itens anteriores se materializassem. Mas o que aconteceu dentro da nossa cabeça ou fora dela que possibilitou um salto em progressão geométrica em direção à inventividade?
4.
A primeira tendência é dar o mérito para o tamanho do cérebro, certo? Errado. Existem esqueletos que datam de pelo menos 130.000 anos que indicam que a caixa craniana dos nossos avós pré-históricos já tinha o mesmo tamanho da nossa. No entanto, existem fortes evidências de que humanos vieram a produzir arte, instrumentos musicais e até mesmo ornamentos pessoais somente há 100.000 anos. Pode ser que fósseis e artefatos mais antigos não foram ainda encontrados ou pode ser que a resposta para a explosão da imaginação humana seja outra.
A resposta pode ser um rearranjo dos nossos circuitos neurais, o surgimento da linguagem ou misteriosas mudanças na cultura que levaram às alterações anteriores. Seja o que for, aqui estamos nós pirando mais do que nunca com nossas imaginações hiperativas e ainda inconscientes do poder que levamos dentro de nós mesmos.
A imaginação humana é a mais potente das ferramentas e a mais terrível arma.
E o mundo preocupado com AI generativa, o que devia nos preocupar realmente é a capacidade humana de inventar qualquer coisa e fazer uso imoral e inconsequente daquilo que inventa. Essa é a real fonte dos nossos pesadelos e a responsabilidade que recusamos em coletivamente admitir.
5.
Existe uma ideia atribuída ao filósofo Karl Popper - não achei a fonte, mas vamos de informação duvidosa, porque é um argumento interessante mesmo que não venha de uma autoridade intelectual reconhecida - a ideia é que a consciência humana evoluiu para que nossas hipóteses morressem ao invés de nós. Partindo desse parâmetro, nossa imaginação seria uma espécie de realidade virtual, uma simulação em que podemos testar, sem riscos físicos, os possíveis resultados de nossas decisões.
Se for isso mesmo, talvez seja hora de testar hipóteses mentais sobre nossas decisões coletivas e evitar as que podem ocasionar a morte e a destruição em massa. A única pedra imaginativa no meio do caminho é que somos delusionais, nossa realidade virtual interior é tão realista que muitas vezes nos afasta das decisões sensatas. Qualquer narrativa que nos dê um mísero alento ou que nos faça nos afundar de vez no desespero pode rodar no software que levamos na cabeça.
Se é que a consciência mora mesmo no cérebro, mas isso é papo para outro texto.
6.
Enquanto foge de leões, você promete a si mesmo que no futuro você será o caçador e não a caça. Sem saber, inventa a profecia. Séculos depois, no topo da cadeia alimentar, você ainda se sente presa. Nos pesadelos noturnos, leões ferozes, ursos e criaturas medonhas te assombram. Por isso, você corre tanto, guardando a inquieta memória ancestral de um passado de fuga.
Mas um dia uma imagem invade sua cabeça como um raio. Homem-leão. O humano predador de outros humanos e de tudo ao redor. A boca com infinitos dentes e o peito transbordando medo. Seu coração se enche de felina coragem e você se permite o descanso, naquela manhã não houve caça, você tinha certeza, todos voltariam vivos. Humanos e leões.
Outros Imaginários…
Quando penso no nosso passado ancestral, essa música vem correndo na minha memória. Nunca tinha visto o clipe e para minha surpresa nele está a corredora mexicana Lorena Ramírez, de los pies ligeros, provando que humanos possuem uma tendência a fazer o inimaginável. Afinal, ela correu 100 km nas montanhas com um chinelo de plástico e usando o vestido típico do seu povo. Obrigada, Lorena, por existir e imaginar tamanho movimento.