Aqui é um lugar onde as pessoas escolhem ficar e as escolhas tem muita força, foi assim que me apresentaram o pequeno distrito de Pipa, no Rio Grande do Norte. Eu hesitei bastante antes de pisar nessa terra, justamente por todo o hype nômade. Imaginava um lugar cheio de gringos com seus laptops, cafeterias que se transformam em coworkings e encontros em bares para investidores de cripto. Nada contra - talvez um pouco - na minha jornada eu prefiro mirar em outro tipo de experiência.
Mas nem tudo é o que parece ser. Viajar de corpo e alma na sua própria vida é experimentar contradições e desde o primeiro segundo eu percebi que Pipa me aceitaria imperfeita e assim eu poderia aceitá-la de volta nas suas contradições. Esse é o princípio das relações profundas.
Durante o período colonial, marinheiros portugueses provavelmente sedentos por um vinhozinho após uma viagem de quase morte, avistaram ao longe uma pedra e viram nela o formato de um barril, chamaram a região de Pipa - o termo português para o lugar de armazenamento da bebida. O nome pegou e foi ganhando novos contornos com o vento forte de alguns meses do ano que faz pensar em outras pipas sobrevoando o céu de nuvens volumosas.
Pipa foi por muito tempo um modesto vilarejo de pescadores, distrito do município de Timbaú do Sul, até se transformar num alvo certeiro do turismo. As transformações que o dinheiro causa são rápidas e irreversíveis. Se você caminhar no pequeno centro de Pipa em uma noite de sexta ou sábado é difícil imaginar o que existia ali antes da grana chegar com tudo.
Como todos os caminhos nômades levam cedo ou tarde para esse pedaço do litoral, foi fácil reencontrar pessoas. Um amigo viajero argentino que conheci em Paraty. Amigos que fiz em Ilha Grande. Uma amiga com quem vivi em Maresias. Criar vínculos do zero é um artesanato delicado e cansativo, por isso confesso que o conforto de estar em um lugar povoado por outros iguais foi mais prazeroso do que imaginava.
A overdose de movimento cedo ou tarde faz a gente sentir uma saudade danada de raízes. É o momento da pausa estratégica.
A prancha se desloca para onde você olha, a professora gritou lá do fundo, enquanto a onda me levava. Na seca brutal de agosto, setembro e outubro no coração do cerrado, minha raiz e origem, eu fazia piadas sobre como aplacaria a secura, surfando e bebendo água de coco na praia. E aqui estou eu, surfando marolinhas numa praia em Rio Grande do Norte.
Eu nasci e cresci distante do mar, mas passei toda uma vida buscando por imensidões de água doce ou salgada. No caminho fui conhecendo outros iguais, gente disposta a grandes sacrifícios pela escolha de viver na beira d’água. A vida também escorre para onde olhamos?
Com uma terra vermelha que lembra a do centro oeste se estende um descampado chamado Chapadão, topo da falésia mais famosa de Pipa. Falésia é uma formação rochosa imponente, esculpida pela água e pelo vento e majestosamente pronta a desabar. Ela se inclina alta em direção ao topo, mas seu futuro é a queda. A dura solidez se desintegrando é de uma beleza sem tamanho.
O Chapadão vermelho com seu aspecto marciano é o centro da disputa pelo território. Um resort que pretende ocupar parte dessa paisagem com uma construção criminosa e parte dos moradores que se levantam imponentes tal qual as falésias contra o empreendimento. A autoestima da grana é tão grande que acredita barrar as rochas cuja natureza é desmoronar.
O que amarrou meu coração ao vôo de Pipa são as praias guardadas por essas rochas que se esfarelam e impedem a violenta ocupação humana. Por mais que a cidade avance, não é possível cruzar totalmente a barreira falésia. As praias aqui se rebelam e se impõem, somos nós que precisamos entender o seu tempo e não o contrário.
Na Praia dos Golfinhos só se chega andando na maré baixa, caminhando humildemente por entre as pedras. Não tem acordo, é ela quem determina o horário de visitação. Se você é disposto e gentil ganha o presente de ver golfinhos nadando na praia casa onde escolheram viver, abrigados e protegidos mais uma vez por elas - as falésias.
Do alto do Chapadão você avista na maré baixa o coração de pedras que inspira o nome da Praia do Amor. Antes, dizem, o nome era Praia dos Afogados. Moradores mais românticos resolveram rebatizá-la. O novo nome pegou. Os dois conceitos, entretanto, conversam bem. Qualquer gota de amor afoga, diz a canção. Afogados e enamorados são diluídos em similar solução.
Cheia de misticismo, as placas avisam que o casal que passa por ali ficará junto para sempre. Eu estendo o conceito para outras formas de amor. No canto direito antes da escadaria talhada na falésia, existe um placa diferente. Nela estão os dizeres: “Aqui viveu um amigo feliz, Andre". A homenagem póstuma anuncia que Andre, seja lá quem for, ainda habita o Amor. O namoro entre ele e a praia sobrevive no elo profundo que só a felicidade cria.
Eu cruzei o portal do Amor pensando em placas que sinalizam a felicidade, no atributo sublime das escolhas, no difícil que é confiar naquilo que se escolhe e nas vidas que se movem silenciosas na direção do olhar, mesmo de olhos cerrados.
No Amor pode ser que a pedra endurecida no peito seja vencida pelas águas, fazendo desmoronar as falésias guardiãs, revelando do alto, para a minha e a sua surpresa, o aquático coração aberto, o templo da evolução humana.
Por essas e outras eu digo a Pipa que fico.